Do rigor à ética da distância

 J.-M. Nobre-Correia

A recente campanha eleitoral pôs ainda mais em evidência o jornalismo que, de maneira geral, se está a praticar neste país…

Haverá quem diga que foi mais do mesmo. Que, no fim de contas, a informação a que tivemos direito, entre a dissolução da Assembleia da República e as eleições legislativas, não desmereceu daquela a que nos foram habituando. Mas houve uma acentuação de caraterísticas habituais e algumas novidades.

O desequilíbrio de sensibilidade política dos média ditos “nacionais” foi uma vez mais percetível. A preferência foi dada mais a uma ala do arco constitucional do que à outra, tomando pouco em consideração componentes de peso da vida parlamentar e social. O que não os impediu de dar especial atenção a iniciativas unipessoais, contribuindo assim para o sucesso que viriam a ter.

Outra especialidade nacional: a proliferação de tudólogos capazes de escrever e falar sobre os mais diversos assuntos, com uma notória incompetência em boa parte deles. Só que, desta vez, o sectarismo de alguns tornou-se mais notório, a agressividade e o insulto sendo preferidos às desejáveis análises de opções em presença. Vindo acrescentar-se nalguns casos uma evidente preocupação em branquear candidatos e formações que, em países de velha tradição democrática, são objeto de intransponíveis “cordões sanitários”.

Componentes habituais das campanhas eleitorais, as sondagens tomaram desta vez uma significação particular. Já nas autárquicas de Lisboa, os prognósticos anunciados foram desmentidos pelo voto: as diferenças gigantescas entre candidatos adiantadas talvez tenham provocado, em tempo de pandemia, uma importante desmobilização do eleitorado potencial do previsto vencedor. Mas então para que servem sondagens incapazes de tomar em consideração fatores suscetíveis de afetar comportamentos dos eleitores?

Desta vez, porém, o erro aumentou de escala. Pelo que há que por em questão o rigor científico das sondagens, assim como a interpretação que os média fazem dos dados. E qual a competência técnica dos jornalistas levados a elaborar “peças” sobre estes dados? Não terá havido a tentação de anunciar à ligeira, antes da concorrência, resultados sensacionais? Terá havido a preocupação de esmiuçar os questionários, as amostras do eleitorado estudadas, as interpretações propostas, os intervalos de erro?

Para um média, encomendar uma sondagem consiste em financiar uma recolha de dados que atiçarão a curiosidade do público e serão repercutidos noutros média. Mas isso não pode dispensar o jornalismo de análise e “de terreno”, de reportagem e de documentação, certamente mais dispendioso em termos financeiros e mais absorvente do trabalho da redação. E foi aqui que, certamente, os média falharam, praticando em demasia um jornalismo sentado à base de telefones, computadores, comunicados, conferências de imprensa e, no caso das campanhas eleitorais, de comícios, arruadas e partidarices diversas.

Um aspeto tomou demasiada evidência: a proximidade, para não dizer a conivência, entre políticos e jornalistas. Com formas de tratamento em que o interlocutor era por vezes interpelado apenas pelo nome próprio ou por “você”. E, já mesmo no fim do dia de eleições, pode-se assistir a uma cena inconcebível para lá da fronteira com o país vizinho: a chegada do chefe de Estado a uma associação de jornalistas em que beijos e abraços se sucederam. Mais: foi então anunciado que o chefe de Estado ia ser proposto como “sócio honorário” da dita associação, reforçando a perceção de que os dois mundos estão a tal ponto imbricados que não existe de facto a distância indispensável a uma informação de qualidade.

Fundador de Le Monde e durante 25 anos um dos grandes diretores europeus do pós-Segunda Guerra Mundial, Hubert Beuve-Méry dizia: “O jornalismo é contacto e distância. Os dois são necessários. Por vezes há demasiado contacto e insuficiente distância. Por vezes é o contrário. Um equilíbrio difícil”. O que o levava a nunca assistir às conferências de imprensa de Charles de Gaulle, seguindo-as em direto pela televisão de modo a poder escrever sobre elas com a devida distância na edição do dia seguinte…


Texto publicado no diário Público, Lisboa, 12 de fevereiro de 2022, p. 12.

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