As turbulências de um personagem inconsistente

J.-M. Nobre-Correia

Intrigas e manobras permanentes não foram suficientes para pôr mão no governo da nação. Havia pois que urdir um golpe de Estado palaciano…

O guião estava delineado nas suas grandes componentes. E os cidadãos dispunham de elementos suficientes para poderem antever o que seria a dramaturgia concebida pelo personagem. Sobretudo os chamados líderes de opinião, políticos e intelectuais, conheciam bem o itinerário do candidato ao longo de mais de uma quarentena de anos para saberem que egocentrismo e exibicionismo, intriguismo e manobrismo eram os fundamentos mesmo da sua personalidade. Componentes a que vinha juntar-se uma grande dose de irresponsabilidade sobre as consequências das suas artimanhas de miúdo reguila atardado.

Era pois urgente denunciá-lo e pôr termo à sua agitação. Só que os tais líderes de opinião, e sobretudo os políticos, tinham-se inspirado na tudologia que ele tinha inaugurado em vésperas de um 25 de Abril que o deixou escapar entre as malhas de uma tolerância demasiado benévola. E, de então para cá, as diabruras mais ou menos teatrais foram cada vez mais apreciadas por média estruturalmente frágeis. Um tal fornecedor em fluxo contínuo de matéria para encher páginas e tempo de antena, só podia ser carinhosamente estimado, embora a diferença essencial entre informação e entretenimento fosse assim dolorosamente negligenciada.

Chegado que foi o momento de se apresentar à eleição para a magistratura suprema, nem foi preciso investir muito na campanha, tão massiva era já a sua presença de longa data nos média e inocente a cumplicidade dos jornalistas, sem comparação possível com as de que outros pobres candidatos podiam usufruir. E, uma vez eleito, a sua margem de manobra em termos de intriga passou a ser progressivamente sem limites. Falando sobre tudo, metendo o bedelho em tudo, procurando fazer passar a ideia que era ele que decidia tudo (e não os reais responsáveis por tais decisões), interferindo na vida das mais diversas instituições e sobretudo na vida do governo. E tal megalomania omnipresente era tanto mais possível que os média adoravam este tipo de momentos diversificados, largamente pré-anunciados, que supunham uma “cobertura” com meios técnicos e humanos limitados e, portanto, com custos bastante reduzidos em termos de produção.

Levando cada vez mais longe os poderes que ele próprio mediaticamente se atribuiu, ignorando soberanamente o que dizem a legislação na matéria como a própria Constituição, foi perdendo toda e qualquer noção da decência que convém num Estado de direito. E como, a dada altura, o responsável do poder executivo — que cometera antes o imperdoável erro de fazer crer ao eleitorado de esquerda que seria normal que ele fosse naturalmente reeleito para um segundo mandato — ousou fazer-lhe frente, então o homem do espetáculo mediático permanente, aproveitou a aflitiva incompetência de uma procuradora manifestamente inapta para urdir um golpe de Estado palaciano.

Tendo o primeiro-ministro tomado imediatamente a iniciativa de se demitir, a questão que se punha então, em termos formais, era a da dissolução do Parlamento ou a designação de outro primeiro-ministro proveniente da maioria absoluta parlamentar. Foi esta segunda hipótese a preconizada por metade do Conselho de Estado que considerou muito responsavelmente que era preciso assegurar uma continuidade e estabilidade governamental num período particularmente conturbado da atualidade mundial. Mas não era esta alternativa que permitiria a um manobreiro sem escrúpulos antever a hipótese com que sonhava há tanto, tanto tempo, pronunciando repetidamente ameaças de dissolução. Para ele, só assim seria potencialmente possível levar os seus ao “pote” e concretizar o seu projeto de um presidencialismo não constitucional, mas mediaticamente reconhecido, e sem limites para exercer a sua megalomania.

O seu sonho perverso, pôr os da sua laia no poleiro e instituir-se grande timoneiro, parece assim passar a ser uma probabilidade que desponta no horizonte. Possa ele ficar doravante na História como um lamentável político de opereta, desestabilizador permanente do Estado de direito e da Democracia. Enquanto vamos esperando o momento em que lhe serão pedidas contas e que a Justiça (uma justiça a sério: competente, eficiente e democrática) o fará pagar pesadamente pela tragicomédia que nos impôs durante todos estes anos…

 

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