O jornalismo televisivo que temos

J.-M. Nobre-Correia

Assuntos escassos e tratamento técnico rudimentar redundam numa cobertura da atualidade, no mínimo, inconsistente…

Quando se veem regularmente, e até quase quotidianamente, telejornais de diversas estações públicas europeias, os principais telejornais da RTP 1 são absolutamente confrangedores. Muito embora durem duas, três e até mesmo quatro vezes mais tempo do que os das colegas europeias, a pobreza do conteúdo é manifesta: uma variedade de assuntos muito limitada, tratados com uma indigência de meios técnicos e humanos evidente.

Esquematicamente, os principais telejornais das 13h00 e das 20h00 começam com um sumário em três títulos (seguidos de publicidade), em que um é quase sempre mais ou menos sensacionalista e outro imperativamente sobre futebol.

Depois, o alinhamento é esquematicamente o seguinte: um jornalismo-em-folhetins que é desde há longas semanas o covid. Com os inevitáveis números do dia de contágios, internamentos e falecimentos. Com a evocação, dia após dia, de situações em lares de terceira idade. E com o absolutamente inevitável desfile de presidentes dos conselhos de administração de hospitais, diretores clínicos, chefes de serviço, enfermeiros chefes, a até mesmo de presidentes de câmara e de provedores de misericórdias, mais os eternos bastonários e presidentes de toda a espécie de agremiações de médicos e, por vezes, de enfermeiros. Os médicos são aliás quase sempre os mesmos, manifestamente mais interessados em mostrarem-se na televisão e fazerem campanhas de promoção pessoal ou política, do que em porem “as mãos na massa” e ocuparem-se de doentes.

A abordagem do covid, tal como está a ser tratada pela RTP, é a de um jornalismo que não exige grande esforço, nem pesquisa, nem documentação, nem grandes deslocações. Apanham-se ali uns personagens nos corredores ou à saída de um hospital ou lar, estendesse-lhes o microfone, enquanto o detentor da carteira de jornalista vai mostrando o mais que pode a sua própria pessoa. Está assim feita a “reportagem”, como lhes chamam, embora a “peça” pouco ou nada tenha a ver com uma verdadeira reportagem jornalística.

Antes ou depois do jornalismo-em-folhetins, vem o jornalismo-em-campanha. Durante semanas foi a campanha que teve como temática diária o assassinato de um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. Agora, esquecido o cidadão ucraniano, a temática diária é a nomeação de procurador de justiça europeu. Dois assuntos que datam de há longos meses, a que os detentores de carteira de jornalista não deram atenção na devida altura, porque não andam “no terreno” e pouco ou nenhum jornalismo de investigação fazem — no sentido próprio deste género jornalístico —, ou porque desconheciam estes assuntos ou, tendo tido indícios sobre ele, não estiveram para se incomodar, saindo da suas confortáveis rotinas. Só que agora, os detentores de carteira de jornalista, por razão de calendário político (que não são o tema deste texto), estão a ser muito bem informados nestas últimas semanas por quem tem razões pessoais, profissionais ou políticas para os informar. Quer dizer: para os instrumentalizar.

Depois do jornalismo-em-folhetins e do jornalismo-em-campanha, cuja ordem é intercambiável segundo os dias, vem uma longa, longa sequência sobre o futebol. Com o inevitável desfile de imagens de competições e de notícias dos mais diversos recantos do mundo onde haja um português a dar chutos numa bola ou a explicar como procurar fazê-lo com sucesso. Mais a absolutamente indispensável presença quase quotidiana daqueles que são na realidade os grandes “maîtres à penser” da sociedade portuguesa, os treinadores de futebol, que tanto e tanto nos têm sempre a dizer todos os dias, todos os dias!

Claro, a estas três partes essenciais dos telejornais, acrescentam-se as mais diversas declarações do omnipresente presidente da República (uma, duas, três, quatro vezes… no mesmo jornal), dos muito presentes ministros e deputados que, a maior parte das vezes, não dizem nada de verdadeiramente importante. Enquanto, regularmente, a atualidade estrangeira, internacional, económica, societal e cultural nem sequer é evocada. A não ser que haja umas imagens “engraçadas”, pitorescas ou chocantes que digam respeito a estas matérias.

Da mesma maneira, estão quase sempre ausentes “peças” de grande reportagem, de investigação e de documentário, assim como quadros de dados fatuais e gráficos explicativos que melhor permitam visualizar e compreender a atualidade. Como faltam ainda análises curtas e incisivas (e não conversas intermináveis com o apresentador do jornal) feitas por jornalistas especializados, e entrevistas de verdadeiros especialistas previamente gravadas e devidamente montadas (e não resultantes de intervenções de “tudólogos” incapazes de síntese e cuja incompetência em matérias específicas salta demasiadas vezes aos ouvidos dos espectadores).

Abundam, pelo contrário, os chamados “diretos”, quase sempre desprovidos de pertinência: está de facto a passar-se qualquer coisa de importante, de determinante, naquele momento que justifique que tenha que ser levada ao conhecimento direto dos espectadores? Porque é que este assunto do “direto” não deu lugar a uma reportagem (no sentido próprio da palavra) ou a uma entrevista, uma e outra devidamente filmadas e montadas (quer dizer eliminando todas as hesitações, repetições e aspetos secundários ou sem interesse para a abordagem do assunto)? Tal como são praticados, os “diretos” correspondem mais ao trabalho profissional de um canalizador do que de um jornalista. Para não falar da preocupação permanente de jovens jornalistas (sobretudo deles) em se mostrarem a eles próprios durante boa parte da sequência, transformando-a mesmo por vezes numa espécie de risíveis passagens de modelos ou desfiles de moda!…

As declarações diárias dos mais diversos representantes de agremiações (ordens, associações profissionais e demais sindicatos) são uma verdadeira praga do jornalismo praticado em Portugal. Sem a menor distância e sem o menor sentido crítico da parte das redações e da direção da informação em relação à competência da personalidade a que se “deu palco” e à pertinência da sua declaração, ou mesmo em relação até à real representatividade da dita agremiação. Declarações que põem em evidência a enorme capacidade de intervenção das assessorias de comunicação das agremiações no estabelecimento da “agenda” das redações e no tratamento que será dado nos telejornais aos interesses da agremiação para que trabalham.

Há depois, para além de todos estes aspetos, a questão da abordagem dos assuntos, da escrita e do tom adotados. Vivia eu em Bruxelas há quase 41 anos, quando fui convidado a intervir num colóquio em Espanha, em outubro de 2007. E a temática que me foi proposta foi a de fazer uma análise comparativa dos média em Espanha e em Portugal. Afirmei eu então, quase em conclusão, que, em Portugal, os média têm “antes do mais como preocupação, como horizonte jornalístico, constituir um antipoder (antipoder e não contrapoder, note-se): antipoder político, antipoder governamental, antipoder perante o poder nos partidos políticos (mas não, note-se, antipoder perante o poder económico, o poder cultural ou mesmo o poder desportivo), conduzindo por vezes campanhas de bota-abaixo, elegendo cavalos de batalha a propósito dos quais dirá muitas vezes tudo e o seu contrário, numa singular conceção do “pluralismo” interno. E isto quando os média em Portugal se caracterizam por um dos mais baixos níveis de desenvolvimento socioeconómico da Europa e uma das mais desoladoras situações de “pluralismo” externo.” Perceções bastante reforçadas desde que regressei e vivo em Portugal.

Esquematicamente, o tratamento jornalístico e o tom adotados nos telejornais concebidos pela RTP 1 fazem deles emissões de informação indigentes. Quando, como televisão pública, paga por todos os cidadãos, a RTP tem teoricamente a obrigação de assumir um serviço de qualidade. Até porque, vivendo numa sociedade democrática que se quer moderna, é urgente dispormos de uma informação (…como aliás de uma programação) à altura do que de melhor se faz numa União Europeia de que, tanto nos dizem, queremos absolutamente fazer parte

 

Comentários

  1. Inteiramente de acordo. Sinto-me reconfortado ao ler este texto. Por vezes cheguei a pensar que me fez mal ter vivido no estrangeiro e me faz mal falar e entender várias línguas.

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