Inquietante desertificação acelerada

J.-M. Nobre-Correia

Lentamente, a imprensa escrita vai perdendo leitores e desaparecendo. Perante uma espantosa indiferença dos meios dirigentes…

Fala-se muito de política quando se evoca a situação da imprensa em Portugal: a erosão das tiragens seria consequência de opções ideológicas das publicações. Raramente se evocam as condições económicas de exercício desta indústria singular. Pouco se diz dos meios humanos de que dispõem as empresas para a produção e a gestão das publicações. E a digitalização como a internet são citadas sobretudo pelos aspetos negativos que tiveram na crise atual.

Ora, a primeira constatação que salta aos olhos no que se refere à imprensa em Portugal é que ela tem índices de consumo baixíssimos, os mais baixos mesmo de toda a Europa ocidental. Consequência de uma situação histórica decorrente de altos e duradouros níveis de analfabetismo; de comunicações difíceis das duas principais cidades onde se editavam jornais com o resto do país; da totalmente insatisfatória distribuição dos jornais pelas áreas naturais de potenciais leitores; do preço elevado das publicações em relação com o poder de compra das pessoas e com o custo de produtos de consumo corrente; de uma imagem de descrédito fruto de uma Censura pesante e ridícula; de um conteúdo tratando quase unicamente do que se passa em Lisboa e um pouco menos no Litoral centro-norte, ignorando largamente o resto do país.

Que mudou nesta situação caraterística do século XIX e dos três primeiros quartéis do século XX? A alfabetização da população; as comunicações muito mais fáceis com o “interior”; um poder de compra mais elevado do que nesses períodos da história; uma censura abolida em favor de uma liberdade desvirtuada. E o que se manteve? Uma distribuição dos jornais ainda insatisfatória; um preço das publicações demasiado elevado; um desinteresse persistente dos microcosmos lisboeta e portuense pelo resto do país. A que vieram acrescentar-se duas novidades: uma preocupante redução dos meios humanos de que dispõem as redações para procurarem cobrir a atualidade; uma adequação tardia e insuficiente ao novo mundo da digitalização e da internet que implicava uma mutação de fundo na abordagem da atualidade e no seu tratamento jornalístico, mas também na comercialização das publicações.

A produção de uma informação de qualidade (seja ela “de referência” ou “popular”) tem porém custos cada vez mais elevados. Se não forem meros canais de escoamento dos serviços de comunicação das instituições e das empresas, os média precisam absolutamente de equipas de redação consistentes e diversificadas em termos quantitativos e qualificativos. De modo a poderem recolher, verificar, aprofundar, perspetivar e analisar factos ligados a uma atualidade imediata ou mais intemporal. Capazes também de adaptar o fruto destas diversas diligências ao tipo de publicação, de suporte e de público visado.

As equipas de redação dos jornais ditos nacionais como dos regionais são, no entanto, inacreditavelmente reduzidas. Um só exemplo: o maior diário regional português, o Jornal de Notícias conta com 78 jornalistas e tem atualmente 24 327 exemplares de “circulação paga” (19 909 em edição impressa e 4 418 em edição digital). Quando o maior diário regional francês Ouest-France, de Rennes (na Bretanha), tem uma “circulação paga” de 645 344 exemplares, uma diferença brutal significativa, mesmo ponderando estes dados com os referentes às respetivas populações.

Só que Ouest-France, cuja independência é garantida por uma associação sem fins lucrativos, conta 1 600 assalariados, dos quais 768 jornalistas. Acrescentemos 2 100 correspondentes locais e 3 600 portadores que entregam logo pela manhã o jornal em casa dos assinantes. Números que permitem compreender porque é o maior diário francês em termos de difusão. Mas também qual é a trágica situação em que vive penosamente a imprensa em Portugal. Situação que os poderes legislativo e executivo, como os demais meios dirigentes do país, preferem soberanamente ignorar. Até porque, talvez seja o sonho secreto deles, sem uma população bem informada será muito mais fácil fazerem impunemente o que querem?…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.

Texto publicado no diário Público, Lisboa, 23 de agosto de 2023, p. 6.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Como é possível?!

O residente de Belém ganhou mesmo?

Deixem-me fazer uma confissão