Insuficiências de uma entrevista

J.-M. Nobre-Correia

A emissão de ontem com o atual presidente da República pôs uma vez mais em evidência algumas tristezas do jornalismo português…

Uma confissão se impõe: desde que regressei a Portugal, vejo ultra-ultra-raramente nas televisões nacionais aquilo que chamo “emissões de palavreado”. Por uma questão de higiene mental e para não perder tempo com o que raramente vale a pena. Mas houve quem chamasse a minha atenção para duas emissões de ontem na Sic Notícias, pelo que acabo de ver a entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa.

A dita entrevista reforçou o meu sentimento de que estas emissões são geralmente uma perda de tempo. E que são tecnicamente detestáveis, com hábitos que se criaram no jornalismo português que não são aceitáveis em termos europeus de jornalismo de qualidade.

Primeiro reparo: o entrevistado estava ali como candidato às próximas eleições presidenciais. Não deveria pois ser tratado por “Senhor Presidente” mas sim por “Marcelo Rebelo de Sousa”, por extenso, para evitar intimidades inadmissíveis. Ou então por “Senhor Professor”. Recordando o célebre debate entre o presidente “sortant” François Mitterrand e o primeiro-ministro “sortant” Jacques Chirac, em 1988, ambos candidatos à presidência da República francesa: Chirac disse logo de início que estavam ali na televisão como candidatos, por isso o trataria por “Monsieur Mitterrand” e não por “Monsieur le Président”! Ora, em mais de uma ocasião foi o candidato Rebelo de Sousa tratado por “Senhor Presidente”.

Segundo reparo: é inaceitável que Rebelo de Sousa tenha começado por dizer “boa noite Bernardo, boa noite Ricardo”. Deveria antes tratá-los pelos seus nomes próprios e apelidos, como eles assinam na profissão. Até porque, mais à frente, voltou a dizer como “diz o Ricardo”. Expressões de intimidade ou de superioridade tanto mais inadmissíveis, como seria o caso se os dois jornalistas dissessem “o Marcelo”.

Quanto ao fundo, os 40m48s de emissão foram tristemente lamentáveis. Tratava-se da entrevista de um candidato a futuras eleições para a presidência da República. O que supunha que fosse interrogado sobre o seu programa para o próximo mandato. Ora, os jornalistas começaram por interrogá-lo sobre o assassinato do imigrante ucraniano, depois sobre o Novo Banco e a TAP, sobre a gripe, a pandemia e o estado de emergência. E só aos 24m51s (já para além de metade da emissão!) perguntaram ao candidato se, no futuro mandato, não “deveria ser mais interventivo”…

Veio depois acrescentar-se uma pergunta totalmente idiota: “como é que definiria André Ventura?”, a que Rebelo de Sousa recusou evidentemente responder. Pergunta seguida de outra que tem sentido: obrigaria os futuros membros de uma coligação a um acordo escrito? E logo outra particularmente absurda: “acha que Rui Rio pode ser o futuro primeiro-ministro?” Já agora, o que pensava do facto de um ex-primeiro-ministro seis anos depois de ter sido preso ainda não estar julgado? Dada a pandemia, não estaria ele “preocupado com a afluência aos locais de voto?” E ponto final!

Em resumo: pouquíssima substância, sendo as perguntas pouco pertinentes e consistentes, numa entrevista notoriamente mal preparada e mal conduzida. Procurou o candidato, no entanto, responder com seriedade, apesar das interrupções constantes (a tal ponto que foi obrigado, quase no início, a ter que perguntar se podia “terminar a resposta”), de os dois jornalistas falarem muitas vezes ao mesmo tempo, de um quase permanente ruído de fundo provocado pelo repetido balbuciar de um dos jornalistas, enquanto o outro evocava mesmo os seus próprios gostos musicais!

Uma nota final se impõe: será o (meio-)irmão do atual primeiro-ministro a pessoa tecnicamente mais indicada para entrevistar candidatos a eleições que inevitavelmente abordarão a política conduzida pelo governo? Em termos profissionais, a questão põe-se, sem dúvida alguma. Mas poder-se-ia acrescentar ainda outra interrogação: os responsáveis pela emissão pensam seriamente ter contribuído para que os cidadãos espectadores compreendam agora melhor do que poderão ser feitos os próximos cinco anos de presidência da República? As dúvidas parecem bem mais fortes do que as convicções…

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