Primeiro dia de exílio

 J.-M. Nobre-Correia

Faz hoje 54 anos que cheguei ao meu destino de exílio. Era já noite escura e chovia em Bruxelas. Não conhecia ninguém, ninguém estava à minha espera e o meu francês era então menos que rudimentar. Logo à chegada, a pega da minha mala tinha resolvido rebentar! Quem me ajudou a repará-la perguntou-me se eu era belga. Disse-lhe que não. E eu respondeu-me: “eu também não, sou flamengo”. Compreendi assim logo nos primeiros instantes que havia um problema em Bruxelas com que eu nem sequer tinha sonhado!

Só, em terra desconhecida, a única referência de que dispunha era a de um artigo publicado duas semanas antes no Diário de Lisboa (Ver ilustração). Sob pretexto de “indicações sobre a vida dos estudantes latino-americanos na Bélgica”, eram nomeadamente mencionadas instituições dotadas de alojamentos e os respetivos endereços. O género típico de texto teoricamente desprovido de interesse num jornal português para leitores portugueses. Mas um texto que fornecia assim informações preciosas a quem queria sair do país. Texto em que os tacanhos serviços de Censura não tinham manifestamente percebido o verdadeiro objetivo…

No táxi, o condutor perguntou-me onde ficava a Rue de Parme que eu lhe indicara. “Perto da universidade”, disse-lhe eu. Mas não era. O condutor deve, no entanto, ter tido um arrebate de consciência e lá me levou direito ao Centre International des Étudiants. Problema: não havia quarto nenhum disponível! Mas estudantes do Haiti intervieram junto da diretora e eu pude finalmente passar lá a noite.

No dia seguinte, um desses mesmos haitianos, estudante em direito, aconselhou-me a ir até à Gueule de Bois, um café perto da Université Libre de Bruxelles, “muito frequentado por portugueses”. Gueule de Bois: o que significava este nome? Gueule: goela, dizia o dicionário. Bois: bosque, madeira, lenha. Uma formulação incompreensível: podia eu lá imaginar que queria de facto dizer ressaca?!

A espera foi longa. E só para o fim da tarde é que de facto ouvi falar português. Dois jovens que, para passar o serão, estavam a pensar em copos e meninas no centro de Bruxelas! Mas que lá tiveram a amabilidade de me levar de carro até um hotelzito que eles conheciam na Place Albert Leemans, onde passei a noite.

No dia seguinte, uma sexta-feira, fui à universidade fazer a minha inscrição. Lá me indicaram o Service Logement, onde me assinalaram um quarto na Rue du Pacifique, em Uccle, na vivenda de uma modista, bastante longe da universidade. Aluguei-o, pois não tinha muita escolha possível, e logo no próprio dia pude lá dormir.

Sábado 31 de dezembro, almocei no restaurante da universidade que estava fechado nos sábados e domingos à hora de jantar. Era dia de passagem do ano e eu perguntei à modista, que tinha lá os filhos para o jantar, onde poderia eu encontrar um restaurante. Ela indicou-me dois ali perto, mas em todos eles me disseram que era preciso ter reservado antes e que não havia nenhum lugar livre. Voltei poucos momentos depois para casa. A modista desejou-me um “bom serão” e “uma boa noite”, sem me fazer qualquer pergunta ou me dizer o que quer que fosse mais. Entrei pois no novo ano a dormir de estômago vazio…

Os meus primeiros dias de exílio não foram muito clementes comigo. Mas depois das férias de Natal-Ano Novo, com a frequência das aulas e do restaurante universitário, e com a minha mudança logo em meados de fevereiro para um quarto na Cité Universitaire, comecei lentamente a integrar-me na vida “ulbista” e bruxelesa que passaram de facto a ser os meus mundos durante exatamente 45 anos e três meses!

Hoje, como nos anos 1960, os portugueses têm tendência a pensar que tudo é maravilhoso, ou pelo menos bem melhor, para além das fronteiras nacionais e, em todo o caso, para além dos Pirenéus. Grave ilusão! Para boa parte dos que quiseram libertar-se da chapa de chumbo salazarista, recusar a guerra colonial, conhecer mundo e viver em liberdade, o exílio não era escolha fácil.

A facilidade ou dificuldade de um exílio dependia, depende largamente das origens geográficas, culturais, económicas e sociais do exilado. Como depende muito da sua capacidade de resistência à solidão, à ausência da família e dos amigos de sempre, assim como da afirmação na nova sociedade em que vive e que passa, ou não, a ser a sua. O exílio não é nada fácil! Enquanto se vai esperando que o regresso não seja de facto um exílio interior!…

 



Comentários

  1. Com circunstâncias diferentes e num país diferente (França) revejo-me em parte neste belo texto! Os quartos d hotel em vez de apartamento...depois de inscrição na Universidade a vida parecia mais leve -refeições na cantina, estudo na biblioteca...encontro com amigos antigos e outros que se encontram adoçavam de certo modo a penosa estadia...falar português...ser escutada nas dificuldades...etc...etc...E Isto passou-se em Toulouse- França !

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