Um género chamado entrevista

J.-M. Nobre-Correia

O jornalismo não é uma ocupação em que se ganha a vida sem preocupações de formação ou de princípios técnicos a respeitar…

Entrámos em campanha eleitoral! Estamos, pois, em tempo de entrevistas! E, dados os hábitos portugueses de consumo mediático, são as entrevistas em televisão que têm dominado as conversas, assim como os ecos que imprensa e rádio depois nos propõem.

Ora as entrevistas que têm passado nas televisões generalistas têm suscitado muitas críticas. Por razões ligadas às formas de tratamento adotadas pelos entrevistadores e, por vezes, pelos próprios convidados. Por se considerar que, em muitos casos, os jornalistas são de uma intolerável agressividade. Porque o entrevistador se permite demasiadas vezes interromper o convidado, impedindo-o de concluir a sua resposta ou argumentação. Mas até porque a entrevista redunda repetidas vezes num pugilato em que as duas partes falam ao mesmo tempo. Para não falar no facto bem real de ver entrevistadores passarem regularmente da simples interrogação à exposição de argumentos, ao debate de ideias, à expressão crítica de sentimentos perante as respostas do entrevistado. Ou ainda de uma inconcebível derrapagem que leva o entrevistador a fazer preferencialmente perguntas sobre acontecimentos da atualidade e não sobre o programa e a conceção do mandato do candidato às eleições presidenciais.

A entrevista é, no entanto, um género jornalístico que obedece a regras de que dependerá a qualidade de uma “peça” ou emissão, às quais virá evidentemente acrescentar-se a perícia, o saber-fazer de quem conduz a entrevista. A primeira regra, demasiadas vezes esquecida, é a que consiste em exigir do entrevistador que se informe previamente sobre a personalidade, a história e as grandes opções do entrevistado. A segunda, também ela muitas vezes descurada, é que o entrevistador tem que conhecer bem a(s) temática(s) sobre a(s) qual(ais) será levado a interrogar o convidado, documentando-se devidamente antes da entrevista.

Uma vez iniciada a entrevista, a terceira regra é a que consiste em procurar trazer a lume posições de base da pessoa perante o tema que justifica a entrevista, tentar perceber a maneira como concebe a sua ação no domínio em que quer intervir, caso venha a assumir o estatuto a que é candidato; procurar “ir mais longe” do que aquilo que geralmente se sabe sobre o convidado, traçar eventualmente o seu perfil e ser cortesmente exigente no que se refere ao aprofundamento da matéria. Quarta regra, não interromper o entrevistado em pleno desenvolvimento da sua argumentação, mas saber fazê-lo e reformular a pergunta de modo a que não se afaste dela ou tente eludi-la. Depois, a quinta regra: nunca transformar uma entrevista em debate, muito menos em pugilato entre entrevistador e entrevistado. E enfim a sexta: a entrevista não deve construir nunca uma ocasião para o jornalista se pôr ele próprio em evidência, para afagar o seu próprio ego, tentando mostrar que conhece bem ou melhor o assunto do que o entrevistado.

Vêm depois acrescentar-se outras regras liminares. A sétima: apagar-se perante o convidado, porque é este que é importante e tem que ser posto em valor, sendo o entrevistador sempre amável, sem servilismo para com o dito convidado. A oitava: não fazer alusão a conversas tidas entre entrevistador e entrevistado antes do início da emissão, o que poderá dar o sentimento ao espectador de que tudo foi previamente combinado e “cozinhado”. A nona: proibir-se absolutamente de formular perguntas que de facto instigam a resposta desejada pelo entrevistador. A décima: conservar um tom de neutralidade no que diz respeito à formulação das perguntas, assim como nas eventuais reações às respostas, sem lhes dar um tom irónico, insinuante ou pérfido. A décima primeira: manter as devidas e convenientes distâncias, muito particularmente no que diz respeito às formas de tratamento, evitando os nomes próprios sozinhos, os tratamentos por “tu” ou “você” e todas as fórmulas que marquem uma proximidade com o entrevistado e a que o espectador é evidentemente estranho. A décima segunda: numa série de entrevistas no quadro de uma mesma temática, adotar a mesma forma de tratamento em relação a cada um dos convidados, eventualmente o mesmo título ou estatuto.

O jornalismo é uma profissão difícil que supõe uma formação inicial cada vez mais exigente, uma atualização regular dos conhecimentos durante a carreira profissional, uma prática rigorosa e exigente. O que supõe a observação dos princípios estabelecidos pelo “livro de estilo” do média onde o jornalista exerce a profissão, “livro de estilo” devidamente adaptado a exigências técnicas e deontológicas desejavelmente postas em dia. Nunca esquecendo que, em Portugal, a televisão é o mais poderoso e duradoiro instrumento de intervenção cultural na sociedade. O que é em nada incompatível com a criatividade e o talento, escusado será dizer…

 

Comentários

  1. Sem mais comentários.
    Completamente de acordo com o conteúdo do texto.
    Obrigado
    JF

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  2. Bravo! Volta jornalismo, estás perdoado!!

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